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terça-feira, 20 de maio de 2014

O CRISTAL DESPEDAÇADO

Quando eu era ainda muito pequena, alguém me ensinou o que era um prisma e como ele funcionava. Era um prisma rudimentar, é certo. Mas bastava eu colocar aquele pedaço de vidro sob o sol para ganhar o presente mais lindo da minha vida: uma refinada explosão de cores refletindo por todos os lados. Era como mágica. Era como trazer o arco-íris para dentro de casa, a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana. Quem disse que eu precisava esperar a conjunção sol-chuva para ser muito feliz? 
Naquela mesma época eu ganhei um caleidoscópio de presente. E minha vida, que já era boa, agora me parecia completa. A festa de tons, de imagens e de brilhos fazia com que cada nova manhã valesse muito a pena. Meu maravilhoso brinquedo proporcionava o ápice da beleza logo ali, ao alcance dos meus olhos e das minhas mãos. O tempo parecia parar. O silêncio ecoava por toda parte. Todas as histórias do mundo se reduziam a um cenário encantado de belas imagens e de paz.
Até que um dia tudo mudou. Não me lembro bem como foi, mas, devido a uma queda, meu adorado cristal se partiu. Aquele pedaço de vidro que outrora me trouxera tamanha felicidade havia agora se transformado em milhares de cacos inúteis. E o resultado disso foi que eu nunca mais pude ter o meu próprio arco-íris. De repente, o mundo havia se transformado em um filme em preto e branco. Agora tudo o que me restava era esperar a rara garoa nos dias ensolarados. Ou o improvável sol amarelo nos dias de tempestades. A felicidade já não dependia de mim. Nunca mais eu senti que ela estivesse sob meu controle e sob as minhas mãos.
Desafortunadamente, o caleidoscópio desapareceu na mesma época. Não sei se ele se perdeu, ou foi furtado, ou foi parar no fundo de um baú qualquer. O fato é que nunca mais o vi. E nunca mais desfrutei, também, daquela maravilhosa orquestra silenciosa de formas harmônicas se movimentando ao rodopio do artefato. Que fase triste. A vida, por que razão seja, tirou de mim, em curto espaço de tempo, meus mais valiosos tesouros. Aqueles cristais encantados foram-se para sempre.
Uns anos depois, quando eu já era mocinha, ganhei um lindo pingente de cristal com areia colorida e logo tratei de atá-lo ao pescoço. É evidente que sua função era outra e que o adorno não me traria  de volta aquele mundo encantado de outrora. Mas ele tinha seu valor. Por alguns anos, minha gota de vidro funcionou como um verdadeiro talismã. E, nos momentos tristes, ela me alegrou porque eu podia me lembrar do cristal da minha infância. Esse berloque também sumiu do nada. Tenho a suspeita que o cordão simplesmente se rompeu. E, mais uma vez, precisei dizer adeus.
Quando adulta, continuei buscando recursos para alegrar o meu mundo. O problema é que, depois de algum tempo, eles simplesmente se esvaíam como fumaça, como se nunca tivessem estado ali.
São mistérios da vida. Desde sempre, presenciei desaparecimentos inexplicáveis e acabei compreendendo que a felicidade não tem vocação para permanecer. Fui surpreendida inúmeras vezes por circunstâncias mais do que improváveis. Estive às voltas com fatos incompreensíveis e com pessoas imprevisíveis. E na singeleza do meu querer, nunca entendi muito bem porque era tão difícil manter o que me encantava, o que era belo, o que me fazia feliz.
Um vidro, quando se parte, é capaz de cortar a carne. E senti essas dores muitas e muitas vezes, dentro e fora de mim. Não é figura de linguagem. É dor verdadeira, física, que pode até ser o resultado da somatização. Mas arde e queima de verdade, como faca encravada no coração.
O cristal é puro. E talvez nunca deixe de ser. Mas pode se despedaçar. E quando isso acontece o seu mundo colorido simplesmente vai embora e deixa para trás a ponta da navalha latejando no peito. A felicidade se esconde e sobra a missão da cura, do entendimento e da compreensão.
Eu não sei se vai ser sempre assim. Mas aprendi a varrer os cacos e a colocar o curativo. Dói por um tempo mas depois vai virando cicatriz. E durante esse período eu simplesmente repouso, mergulho no mundo dos sonhos e busco lá na infância as imagens perdidas do meu mundo mágico. Lembro do que foi a primeira felicidade e de como ela escapou de mim. Às vezes escorre uma lágrima, não de dó, de tristeza, ou de autopiedade. Desce uma lágrima de saudade de tempos longínquos que não podem voltar. Tempos em que um mero raio de sol era capaz de iluminar toda uma existência. Tempos em que a dança das cores não precisava de melodia para poder me encantar. Tempos em que o arco-íris morava em casa e brilhava forte dentro de mim. Tempos em que o cristal não parecia tão frágil e nem prestes a se quebrar. Tempos em que ainda não era necessário juntar os pedaços de nada, porque tudo parecia inteiro, perfeito, eterno.

(foto extraído do Google)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

AS LINHAS DA VIDA

Uma vida pode ter várias formas, formatos, cursos, vetores, sentidos. E, por isso mesmo,  é engraçado que a gente sempre imagine o caminho da vida como uma linha horizontal traçada da esquerda para a direita. Não sei se é convenção nossa ou imagem de caráter universal e inconsciente o fato de que, para nós, a linha da existência seja representada desta maneira. Esta orientação é própria da nossa forma de escrever, o que me faz suspeitar que a lógica do nosso pensamento acompanhe esse mesmo desenho.
Em uma pesquisa superficial no Google, você logo descobre que diferentes escritas são grafadas em diferentes sentidos e direções. Os alfabetos primitivos, por exemplo, podiam ser escritos vertical ou horizontalmente, e, ainda, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima. Já na língua árabe, convencionou-se escrever da direita para a esquerda. Por fim, no idioma chinês e no japonês, a convenção é escrever-se de cima para baixo e da direita para a esquerda da página. Fiquei pensando, assim, se, graficamente, a representação dos fatos da vida para estas outras culturas acompanha a mesma orientação dos escritos de seus respectivos povos. Não sei dizer.
O fato é que se a gente se apega a esta forma usual, erra feio na representação. Explico. Quero crer que a maioria das pessoas, na infância, estudou a linha do tempo, que começava com a pré-história e terminava com a menção de um fato atual. Critério meramente cronológico. Mais nada. Porque por sobre aquela linha apenas fatos e datas eram representados, desprezando-se toda sorte de incríveis interações, ciclos, retrocessos e saltos no desenvolvimento da civilização. Convenhamos que esta é uma maneira muito rudimentar de explicar a história da humanidade. Da singeleza daquelas informações não é possível compreender-se a complexidade do mundo. Quando muito, a gente aprende a pontuar os eventos em marcos temporais específicos.
De igual maneira, se você vir a sua vida como um simples traçado horizontal pontilhado de datas e fatos, não estará representante com fidelidade o curso da sua existência.
É claro que, do ponto de vista exterior, há ocorrências relevantes a serem anotadas na linha. Quanto a nós, porém, naquilo que diz respeito à nossa mais pura essência, é impossível fazer-se qualquer datação: em raríssimas oportunidades uma pessoa consegue apontar dia, mês e hora para situar uma mudança na alma. 
Somos seres tão complexos que nossa metamorfose acontece sem que nos apercebamos. No dia-a-dia da nossa existência apenas vamos vivendo até que um dia a gente percebe que, não se sabe como, algo simplesmente mudou. A gente pode observar que andou muito em pouquíssimo tempo, ou que não andou nada, ou que andou para trás, numa dinâmica aparentemente irracional que desafia o relógio convencional. Às vezes você percebe que está no passado. Ou no futuro. Ou pode estar se movimentando para dentro de si na busca de algo que se perdeu, ou que você jamais teve, mas deseja ardentemente encontrar.
Nossas verdadeiras linhas, assim, não podem ser tidas por retas ou cartesianas. Nosso andar espiritual e mental pode ser sinuoso, senoidal, espiralado, cíclico, ascendente, descendente, reverso. E na verdade a gente não tem muito controle sobre isso. A estrada da vida simplesmente vai se abrindo sozinha, sem sinal ou aviso. É como se uma força impalpável te guiasse pela mão por uma trilha desconhecida e não escolhida. É comum a gente não entender porque a maré puxou para um lado, ou para o outro, ou porque há um verdadeiro cabo de guerra entre o desejo e a realidade.
Eu acho que não importa a sua fé para você entender que estas ocorrências fazem parte do imponderável. Sabemos que devemos fazer a nossa parte, mas esta ação não esgota a equação. Os pontos cegos, o inesperado, o chamado acaso e as coincidências servem, mais do que tudo, para nos desmentir. E provam com maestria que somos poeira no universo. E que apenas oscilamos entre nossos esforços e uma simples lufada de vento. E que nem sempre debater-se nos leva à direção que desejamos.
Acreditar ou não em destino fica a seu exclusivo critério. Mas não há que negar que a precariedade do homem assemelha-se a uma pluma branca que balança em função da intensidade da brisa. Para uma ave ferida é cansativo demais tentar alçar voo. Para uma pessoa minimamente consciente é muito desgastante encarar sua vida como uma complicada operação matemática. Para uma alma doente, querer a qualquer custo pode significar o fim de uma existência.
O tempo passa. As linhas se confundem. Os nós se desfazem. Muito do esforço é em vão. Muito da previsão é bobagem. Sua vida, não importa como ela seja, sempre faz algum sentido. Se não hoje, talvez no dia de amanhã. Ou quando, finalmente, você se dispuser a flutuar. 

(foto obtida no Google)