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sexta-feira, 3 de julho de 2015

O CARROSSEL

Às vezes a vida parece um faz-de-conta enfeitado e colorido. Você vai à bilheteria, compra seu ticket e, deslumbrada, dirige-se ao carrossel. Já de longe você escuta a música, as risadas e um pouco do barulho enferrujado da máquina. Mas quem se importa? É ali mesmo que você decide embarcar. Os cavalinhos são lindos, galopam em perfeita harmonia, e sobem e descem com a precisão da dança da natureza. Há uma longa fila até chegar a sua vez. Mas vale a pena esperar. O dia está frio, mas não chove. Ao contrário, faz um enorme sol amarelo que ilumina aquele brinquedo tal qual um holofote. Além disso, há milhares de luzinhas piscantes em cada um dos mastros. O dossel é dourado e grandioso. O maquinista usa um quepe azul. E agora é a hora da sua diversão. Quem se incomoda com a idade? Há pessoas de todos os tipos esperando a sua vez de brincar. E então você pensa: "por que não?". E sobe num cavalinho amarelo.
O motor é acionado e você começa a girar, girar... As crianças gritam de alegria e algumas delas carregam um algodão doce cor de rosa na mão. É claro que o brinquedo é lindo. De repente você se inunda com a sensação de fantasia que não sentia desde os oito anos de idade. Na sua frente, talvez passe um filme inteiro da sua vida, mostrando tudo aquilo que aconteceu desde então. Quem já não se sentiu assim?
As lembranças são um sopro de alegria e nos reposicionam ante a realidade. Somos capazes de lembrar das tristezas, mas, miraculosamente, voltamo-nos mesmo para uma sensação de felicidade. A gente começa a pensar naquela época em que parecia não haver problemas e que a parte mais difícil da vida era fazer a lição de casa.
Mas não é assim. Já naqueles tempos, havia dificuldades. E muitas, se você considerar a pouca experiência que você tinha. Não acho que mudou tanto assim. As adversidades vão se alterando na medida do seu crescimento e, de uma certa forma, tudo vai mesmo se tornando mais fácil.
Mas há uma diferença. Hoje não há mais como viver o faz-de-conta. E a vida não é um parque de diversões.
Por alguns minutos, pode parecer inebriante girar nas costas daqueles cavalinhos de madeira, estáticos e inanimados. Mas nossa existência clama mesmo pelo realismo, pelo dinamismo e pela capacidade de realizar. E isto não é necessariamente ruim. Para nosso próprio bem, é bom que saibamos a que viemos e o que nos define neste mundo. Cada uma de nós é tão diferente e complexa, que reduzir os nossos dias ao giro de um carrossel certamente não satisfaz a alma. Ninguém sabe ao certo o que é a alma. Poetas de toda a parte do mundo procuraram defini-la, mas na verdade cada uma de nós tem um conceito muito próprio. Talvez esse conceito não seja racional, mas sensorial. Mas a certeza de saber o que você deve fazer e o reconhecimento daquilo que faz sentido são capazes de satisfazê-la. Você não vê sua própria alma, mas sabe quando ela sorri em sua completude.
No filme da vida, a gente se pergunta o que fez até então. E de repente a alma começa a despertar, satisfeita, quando você assume a consciência de que deu o melhor de si em cada momento. Neste instante, a alma brilha porque sua vida não foi um giro inútil, contemplativo, passivo, mecânico e repetitivo.
O carrossel agora parou e é hora de retornar à realidade. Os medos são sempre tão relevantes. De tudo que a gente sente, parece que o medo é o sentimento que tem maior poder sobre nós. Às vezes preferimos mesmo nos entregar aos rodopios seguros, aos passeios previsíveis, aos percursos conhecidos. E nessas horas a alma chora porque sabe que podemos muito mais do que isso e que viver como um mero passageiro não nos levará a lugar nenhum.
Temos pés, mãos e asas. Podemos fazer muito mais do que simplesmente nos agarrarmos às hastes que cravam aqueles cavalinhos. Não somos pégasos, é verdade. E também não somos aves, não temos asas literais. Mas podemos ir aonde queremos. E não falo sobre atravessar os céus e os oceanos, porque muitas vezes isso é mesmo difícil. Falo, isso sim, de transformar a sua alma em um espaço onde caiba o mundo inteiro e onde não haja limites para a vontade de realizar.
É quase noite e o parque já está fechando. Vamos embora. Em casa pensamos melhor sobre isso. De toda forma, lembre-se: nunca será tarde para decidir como fazer a sua alma se iluminar e brilhar faiscante no meio do jardim.  Como um imponente carrossel.

(imagem extraída whatbird.com)


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A FLECHA NO CORAÇÃO

"Quando uma estrela fica sem combustível, ela começa a esfriar e a gravidade assume o controle, provocando sua contração. Esta contração aperta os átomos, aproximando-os, e faz a estrela tornar-se novamente mais quente". Esta afirmação de cunho científico está na página 82 do livro "Uma Nova História do Tempo", de Stephen Hawking e Leonard Mlodinow. Pela terceira vez recomeço o livro desde o seu prefácio para tentar entender as coisas misteriosas e complexas desta casca de noz. E confesso que, em parte, meus esforços têm se mostrado em vão.
É muito interessante pensar que você se acha razoavelmente inteligente até descobrir que a força da gravidade altera o tempo, em sua essência. Certo. Você pode repetir mil vezes que tudo é relativo e que, se viajar mais rápido que a luz, poderá percorrer o tempo para trás. Ou pode também oferecer-se para pessoalmente testar o paradoxo dos gêmeos numa nave espacial com o bônus, ainda, de voltar mais jovem para a face da Terra. Ou, então, pode solenemente proclamar que tudo é infinito, que o universo não é tridimensional e que o início de tudo decorreu de uma simples explosão.
Muitas destas assertivas eu tenho reproduzido desde sempre. E desde sempre também tenho me perguntado sobre a correção das minhas conclusões. Além disso, parte do que digo sequer faz sentido para mim, o que me põe a duvidar da própria pertinência dos meus questionamentos.
Sinto-me um pouco frustrada porque minha mente não alcança o exato sentido das coisas, nem mesmo após a vagarosa leitura de texto didático por inúmeras vezes. Pode ser também que eu não tenha aptidão para o pensamento abstrato, pois, a despeito das minhas inúmeras tentativas, acabo sempre voltando a aquelas questões primárias que formulei na minha infância, em pouco ou nenhum progresso nas minhas respostas. E ecoa em minha mente: O que havia antes? O que haverá depois? Existe algo que possa ser espacialmente ilimitado? O que é o nada? O que é o eterno? Como vim parar aqui?
Em algum momento da minha vida li que se eu fosse capaz de entender alguns destes mistérios eu poderia ser muito mais feliz. É possível. Certamente a apreensão exata de dilemas bastante complexos tornaria muito mais intuitiva a compreensão dos fatos singelos e cotidianos, sob a acepção de suas razões e de seus por quês. 
Alguém então poderia dizer que o entendimento da vida está muito mais inserido nas questões afetas à fé do que nas questões relativas à ciência. Meu pragmatismo, entretanto, insiste em buscar as imediatas e razoáveis explicações racionais para os eventos mais insignificantes da vida.
É do meu feitio, como se diria. Mas, por outro lado, este mesmo pragmatismo me empurra para frente, como que dizendo que não há tempo para abrir o livro pela terceira vez. E eu sigo esta voz. Acabo me impelindo para a frente sem parar para analisar muito do que ocorre em minha vida. Perde-se um pouco, é verdade. Mas ganha-se em tempo e otimização, o que parece lá ter suas vantagens.
Uma antiga lenda fala de um índio que recebeu uma flechada envenenada em seu coração. Indignado, quis saber quem tinha disparado a flecha, a razão para o ataque, o tamanho do arco, a distância do inimigo, a composição do veneno, e outros detalhes que somente os animais da mata poderiam esclarecer. O curandeiro, então, sugeriu que ele primeiro retirasse a flecha do seu peito para, somente depois, continuar com suas reflexões. De fato, a teimosia e a pressa por conhecer todas as respostas certamente o deixariam morrer.
E assim ficamos presas no dilema entre o perguntar ou o prosseguir, em um ciclo que não conduz a um resultado prático satisfatório.
Às vezes simplesmente andamos. Em outras ocasiões, voltamos a aquelas questões antigas e que são paralisantes. Ou então apenas emperramos, tentando entender o significado de algum específico episódio ou as razões pelas quais as coisas são como são.
Falta sabedoria. De minha parte, eu deveria ser prática como o curandeiro sugeriu e arrancar de vez a flecha envenenada do meu coração.  
Ocorre que eu consigo entender as inquietações do índio. Como andar pela floresta sem conhecer o inimigo e de ter a certeza de quantos são? Como preparar-se para a defesa sem saber as razões para o ataque? Como municiar-se adequadamente sem inteirar-se do poder de fogo do guerreiro adversário? 
As perguntas são pertinentes, por evidente. O problema é que talvez nunca se chegue às respostas corretas, se é que elas existem. Considere, por exemplo, a possibilidade de a flechada ter sido fruto de um mero acidente. Neste caso, não existiriam inimigos e nem confrontos futuros. O índio teria se desgastado inutilmente em tentar encontrar as explicações, que, a rigor, não passam mesmo de suposições.
Então é melhor andar. Porque quando a gente simplesmente para, o combustível vital se esvai, a vida se esfria, as contingências tomam o comando e o corpo se contrai. É assim também com as estrelas, como aprendi e transcrevi no início deste texto, em trecho que, para minha felicidade, compreendi em sua plenitude. 
Nas situações extremas, você chega ao seu limite e é necessária significativa pressão decorrente da contração para que você possa se reaquecer. O processo é penoso. O sofrimento é intenso. O esforço é desmedido. E a perda de parte da vitalidade é irrecuperável.
Estou convencida de que a estagnação, ainda que temporária, é sempre prejudicial. 
Melhor que se retire logo a flecha do peito para que se inicie a recuperação. É uma questão de prioridade cuidar primeiro do que é essencial, palpável e conhecido. O resto é o resto. Você poderá entender posteriormente, caso exista mesmo algum sentido. Na pior das hipóteses, você tem a eternidade.
E aprenda o que é a resiliência dos corpos, a magnífica capacidade de voltar ao estado anterior após acentuada deformação.
No mais, siga em frente, sempre. Há uma imensa estrada logo ali. E também não há que se enxergar desde logo qual é o ponto de chegada. Ao contrário, basta que se consiga iluminar apenas alguns poucos metros à frente para entender qual é o melhor caminho a seguir.






terça-feira, 20 de maio de 2014

O CRISTAL DESPEDAÇADO

Quando eu era ainda muito pequena, alguém me ensinou o que era um prisma e como ele funcionava. Era um prisma rudimentar, é certo. Mas bastava eu colocar aquele pedaço de vidro sob o sol para ganhar o presente mais lindo da minha vida: uma refinada explosão de cores refletindo por todos os lados. Era como mágica. Era como trazer o arco-íris para dentro de casa, a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana. Quem disse que eu precisava esperar a conjunção sol-chuva para ser muito feliz? 
Naquela mesma época eu ganhei um caleidoscópio de presente. E minha vida, que já era boa, agora me parecia completa. A festa de tons, de imagens e de brilhos fazia com que cada nova manhã valesse muito a pena. Meu maravilhoso brinquedo proporcionava o ápice da beleza logo ali, ao alcance dos meus olhos e das minhas mãos. O tempo parecia parar. O silêncio ecoava por toda parte. Todas as histórias do mundo se reduziam a um cenário encantado de belas imagens e de paz.
Até que um dia tudo mudou. Não me lembro bem como foi, mas, devido a uma queda, meu adorado cristal se partiu. Aquele pedaço de vidro que outrora me trouxera tamanha felicidade havia agora se transformado em milhares de cacos inúteis. E o resultado disso foi que eu nunca mais pude ter o meu próprio arco-íris. De repente, o mundo havia se transformado em um filme em preto e branco. Agora tudo o que me restava era esperar a rara garoa nos dias ensolarados. Ou o improvável sol amarelo nos dias de tempestades. A felicidade já não dependia de mim. Nunca mais eu senti que ela estivesse sob meu controle e sob as minhas mãos.
Desafortunadamente, o caleidoscópio desapareceu na mesma época. Não sei se ele se perdeu, ou foi furtado, ou foi parar no fundo de um baú qualquer. O fato é que nunca mais o vi. E nunca mais desfrutei, também, daquela maravilhosa orquestra silenciosa de formas harmônicas se movimentando ao rodopio do artefato. Que fase triste. A vida, por que razão seja, tirou de mim, em curto espaço de tempo, meus mais valiosos tesouros. Aqueles cristais encantados foram-se para sempre.
Uns anos depois, quando eu já era mocinha, ganhei um lindo pingente de cristal com areia colorida e logo tratei de atá-lo ao pescoço. É evidente que sua função era outra e que o adorno não me traria  de volta aquele mundo encantado de outrora. Mas ele tinha seu valor. Por alguns anos, minha gota de vidro funcionou como um verdadeiro talismã. E, nos momentos tristes, ela me alegrou porque eu podia me lembrar do cristal da minha infância. Esse berloque também sumiu do nada. Tenho a suspeita que o cordão simplesmente se rompeu. E, mais uma vez, precisei dizer adeus.
Quando adulta, continuei buscando recursos para alegrar o meu mundo. O problema é que, depois de algum tempo, eles simplesmente se esvaíam como fumaça, como se nunca tivessem estado ali.
São mistérios da vida. Desde sempre, presenciei desaparecimentos inexplicáveis e acabei compreendendo que a felicidade não tem vocação para permanecer. Fui surpreendida inúmeras vezes por circunstâncias mais do que improváveis. Estive às voltas com fatos incompreensíveis e com pessoas imprevisíveis. E na singeleza do meu querer, nunca entendi muito bem porque era tão difícil manter o que me encantava, o que era belo, o que me fazia feliz.
Um vidro, quando se parte, é capaz de cortar a carne. E senti essas dores muitas e muitas vezes, dentro e fora de mim. Não é figura de linguagem. É dor verdadeira, física, que pode até ser o resultado da somatização. Mas arde e queima de verdade, como faca encravada no coração.
O cristal é puro. E talvez nunca deixe de ser. Mas pode se despedaçar. E quando isso acontece o seu mundo colorido simplesmente vai embora e deixa para trás a ponta da navalha latejando no peito. A felicidade se esconde e sobra a missão da cura, do entendimento e da compreensão.
Eu não sei se vai ser sempre assim. Mas aprendi a varrer os cacos e a colocar o curativo. Dói por um tempo mas depois vai virando cicatriz. E durante esse período eu simplesmente repouso, mergulho no mundo dos sonhos e busco lá na infância as imagens perdidas do meu mundo mágico. Lembro do que foi a primeira felicidade e de como ela escapou de mim. Às vezes escorre uma lágrima, não de dó, de tristeza, ou de autopiedade. Desce uma lágrima de saudade de tempos longínquos que não podem voltar. Tempos em que um mero raio de sol era capaz de iluminar toda uma existência. Tempos em que a dança das cores não precisava de melodia para poder me encantar. Tempos em que o arco-íris morava em casa e brilhava forte dentro de mim. Tempos em que o cristal não parecia tão frágil e nem prestes a se quebrar. Tempos em que ainda não era necessário juntar os pedaços de nada, porque tudo parecia inteiro, perfeito, eterno.

(foto extraído do Google)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

AS LINHAS DA VIDA

Uma vida pode ter várias formas, formatos, cursos, vetores, sentidos. E, por isso mesmo,  é engraçado que a gente sempre imagine o caminho da vida como uma linha horizontal traçada da esquerda para a direita. Não sei se é convenção nossa ou imagem de caráter universal e inconsciente o fato de que, para nós, a linha da existência seja representada desta maneira. Esta orientação é própria da nossa forma de escrever, o que me faz suspeitar que a lógica do nosso pensamento acompanhe esse mesmo desenho.
Em uma pesquisa superficial no Google, você logo descobre que diferentes escritas são grafadas em diferentes sentidos e direções. Os alfabetos primitivos, por exemplo, podiam ser escritos vertical ou horizontalmente, e, ainda, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima. Já na língua árabe, convencionou-se escrever da direita para a esquerda. Por fim, no idioma chinês e no japonês, a convenção é escrever-se de cima para baixo e da direita para a esquerda da página. Fiquei pensando, assim, se, graficamente, a representação dos fatos da vida para estas outras culturas acompanha a mesma orientação dos escritos de seus respectivos povos. Não sei dizer.
O fato é que se a gente se apega a esta forma usual, erra feio na representação. Explico. Quero crer que a maioria das pessoas, na infância, estudou a linha do tempo, que começava com a pré-história e terminava com a menção de um fato atual. Critério meramente cronológico. Mais nada. Porque por sobre aquela linha apenas fatos e datas eram representados, desprezando-se toda sorte de incríveis interações, ciclos, retrocessos e saltos no desenvolvimento da civilização. Convenhamos que esta é uma maneira muito rudimentar de explicar a história da humanidade. Da singeleza daquelas informações não é possível compreender-se a complexidade do mundo. Quando muito, a gente aprende a pontuar os eventos em marcos temporais específicos.
De igual maneira, se você vir a sua vida como um simples traçado horizontal pontilhado de datas e fatos, não estará representante com fidelidade o curso da sua existência.
É claro que, do ponto de vista exterior, há ocorrências relevantes a serem anotadas na linha. Quanto a nós, porém, naquilo que diz respeito à nossa mais pura essência, é impossível fazer-se qualquer datação: em raríssimas oportunidades uma pessoa consegue apontar dia, mês e hora para situar uma mudança na alma. 
Somos seres tão complexos que nossa metamorfose acontece sem que nos apercebamos. No dia-a-dia da nossa existência apenas vamos vivendo até que um dia a gente percebe que, não se sabe como, algo simplesmente mudou. A gente pode observar que andou muito em pouquíssimo tempo, ou que não andou nada, ou que andou para trás, numa dinâmica aparentemente irracional que desafia o relógio convencional. Às vezes você percebe que está no passado. Ou no futuro. Ou pode estar se movimentando para dentro de si na busca de algo que se perdeu, ou que você jamais teve, mas deseja ardentemente encontrar.
Nossas verdadeiras linhas, assim, não podem ser tidas por retas ou cartesianas. Nosso andar espiritual e mental pode ser sinuoso, senoidal, espiralado, cíclico, ascendente, descendente, reverso. E na verdade a gente não tem muito controle sobre isso. A estrada da vida simplesmente vai se abrindo sozinha, sem sinal ou aviso. É como se uma força impalpável te guiasse pela mão por uma trilha desconhecida e não escolhida. É comum a gente não entender porque a maré puxou para um lado, ou para o outro, ou porque há um verdadeiro cabo de guerra entre o desejo e a realidade.
Eu acho que não importa a sua fé para você entender que estas ocorrências fazem parte do imponderável. Sabemos que devemos fazer a nossa parte, mas esta ação não esgota a equação. Os pontos cegos, o inesperado, o chamado acaso e as coincidências servem, mais do que tudo, para nos desmentir. E provam com maestria que somos poeira no universo. E que apenas oscilamos entre nossos esforços e uma simples lufada de vento. E que nem sempre debater-se nos leva à direção que desejamos.
Acreditar ou não em destino fica a seu exclusivo critério. Mas não há que negar que a precariedade do homem assemelha-se a uma pluma branca que balança em função da intensidade da brisa. Para uma ave ferida é cansativo demais tentar alçar voo. Para uma pessoa minimamente consciente é muito desgastante encarar sua vida como uma complicada operação matemática. Para uma alma doente, querer a qualquer custo pode significar o fim de uma existência.
O tempo passa. As linhas se confundem. Os nós se desfazem. Muito do esforço é em vão. Muito da previsão é bobagem. Sua vida, não importa como ela seja, sempre faz algum sentido. Se não hoje, talvez no dia de amanhã. Ou quando, finalmente, você se dispuser a flutuar. 

(foto obtida no Google)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O PRINCÍPIO DOS VASOS NÃO COMUNICANTES

Houve uma época da minha vida em que tudo desmoronou. Incrivelmente, nada parecia funcionar e, olhando para um lado e para o outro, eu não conseguia enxergar nenhuma saída. A única coisa que eu sentia era uma pressão muito forte no meu peito. Meu corpo, para aliviar esta tensão, extravasava todo esse sentimento e toda essa dor na forma de lágrimas. Muitas e muitas lágrimas. Eu devo ter chorado por pelo menos umas quatro semanas ininterruptas. Minha única trégua era o trabalho. Nunca fiz questão de parecer forte aos outros, mas, magicamente, não chorei naquele ambiente. 
Era necessário fazer alguma coisa. Mentira. Quem disse que nesse estado de coisas você consegue empreender uma avaliação crítica e elaborar uma estratégia? Eu não pensava em nada, em absolutamente nada. Até que em um certo dia me veio a imagem de um naufrágio. Não me lembro se foi um filme a que assisti, um sonho perturbador ou se foi a minha fértil imaginação. Mas a cena que se formou na minha mente era muito clara. 
Eu sempre gostei de água. Quando criança, eu era um verdadeiro peixe. Então, naquele cenário, eu podia me ver muito serena agarrada a um pedaço de madeira em forma de tábua. O mar estava calmo e cálido. Não havia desconforto. Do meu lado direito, o navio afundava e eu não conseguia nem ver e nem ouvir qualquer pessoa. Eu estava literalmente sozinha no meio do oceano. As marolinhas batiam em mim e fiquei feliz por avistar uma ilha não muito longe dali. Era óbvio que eu poderia nadar até lá e esperar por socorro. Comecei a observar melhor a água e percebi que havia objetos flutuando. Muitos deles. Vi algumas latas fechadas de alimentos, garrafinhas de água e também muitas outras coisas inúteis ou imprestáveis. E nesse momento operou-se o milagre do salvamento e da salvação. Eu aprendi a recomeçar. Como eu precisaria nadar até a ilha, tive de escolher muito bem os objetos a serem recolhidos. Sem desespero, examinei um a um, avaliando o que poderia ser útil e o que poderia ser deixado para trás. Não foi difícil levar as coisas selecionadas com o auxílio da minha prancha. E poucos dias após permanecer sozinha na ilha, fui finalmente resgatada em perfeitas condições, físicas e mentais.
Este episódio mudou minha vida. Dele eu tirei a quase totalidade do pouco que sei. Foi com razão e com calma que eu me recuperei. Lembrei-de de novo da minha infância, precisamente da época da escola em que aprendi a fazer gráficos de barras. E desenhei um lindo gráfico na minha cabeça. Cada barrinha representava um setor da minha vida: saúde, filho, família, trabalho, vida social, vida afetiva e outras áreas significativas. E, desde então, todos os dias da minha vida, faço a avaliação do estado de cada um destes segmentos e dedico-me a melhorar a barra que apresenta o menor desempenho. Este método é eficaz e funciona muito bem porque uma barra nunca interfere na outra. Um problema aqui não pode estragar o que está bom por lá. Por que você jogaria um punhado de terra num copo de água cristalina e potável? Não é justo com os outros, com a vida e principalmente com você. Criei este princípio para mim. Lembra-se do princípio de física dos vasos comunicantes? Pois então. A premissa aqui é que este princípio nunca seja aplicado, em nenhuma situação e sem qualquer exceção.
Cada um é um, é verdade. E eu não sou filósofa ou sabida o suficiente para afirmar que o que funciona para mim vai funcionar para todos.
De todo modo, faço um convite a esta experiência. Nas situações extremas, permaneça calma, racional e selecione o que serve e o que não serve. Em seguida, repasse mentalmente seu gráfico pessoal e faça uma avaliação sincera de cada setor. Por fim, dedique-se ao mais vulnerável e lembre-se de preservar as áreas satisfatórias.
Isso é ciência? Não, é puro empirismo. Posso prometer que funciona? Não, por evidente. Mas se não se comprova sua eficiência, também não se demonstra sua inutilidade porque a ausência da prova do acerto não significa, necessariamente, a incorrência em erro. E quanto a isso tenho a mais absoluta certeza. A propósito desta assertiva, posso afirmar que se trata de postulado universal.

sábado, 13 de abril de 2013

QUANDO A CHUVA CHEGA

Hoje é um sábado chuvoso aqui em São Paulo, daqueles perfeitamente capazes de descrever com precisão por que a cidade é conhecida como "Terra da Garoa". Olho pela janela e vejo a fina cortina de água descendo por entre as árvores e prédios. E as aves não cantam.
Há dias assim também dentro de nós. Há momentos cinzentos, tristes, melancólicos e quietos. Dias em que a ave que habita a alma simplesmente se recusa a cantar. E a gente não sabe se ela não canta porque não há nenhuma outra fazendo barulho ou se é por falta de vontade ou por ato de rebeldia.
Normalmente gostamos de ficar em nossos ninhos nesses dias nublados. Parece que, diante de tanto silêncio, interior e exterior, formaliza-se um convite ao "entrar em si".
Quando a gente era criança conhecia de cor o ciclo da chuva e naquela época ninguém parecia se importar quando chegava esta época. Uma vez que você não podia sair de casa para se molhar e pular poças d'água, brincar dentro de casa era a agradável opção disponível. Bolinhos de chuva, corrida de pingo e rabiscos na vidraça eram possibilidades que existiam somente nestes dias.
Depois que a gente cresceu, nunca mais prestou atenção nestes detalhes. Ora, todo mundo sabe que a chuva é um fenômeno meteorológico normal, sem o qual a natureza e a própria vida ficam comprometidas. Sendo assim, a gente não deveria se aborrecer com isso.
Nosso ser também se sujeita a este círculo. Quando as nuvens se tornam densas e pesadas demais, é necessário extravasar. E é neste momento que a precipitação, no sentido climático do termo, finalmente ocorre.
É claro que ninguém gosta de chorar. Acho isto muito normal se você considerar que a maioria das pessoas detesta chuva e nunca se lembra daqueles desenhos que esboçavam o fenômeno hídrico e que eram estudados para as provas de ciências.
Mas assim como gotículas leves ou ruidosas tempestades, as lágrimas também têm uma função muito importante na nossa existência.
Elas higienizam males das mais variadas espécies e, o mais importante, põem sua lavoura para crescer e tornam viçosos os brotos do seu plantio.
As lágrimas são intrincadas e, de uma certa forma, muito mais intrigantes e misteriosas que as gotinhas que vejo escorrer junto ao vidro opaco.
Por uma infinidade de diferentes razões elas eclodem no nosso mundo, não necessariamente obedecendo às regras das estações do ano e às etapas do nosso crescimento. E veja só que curioso: o choro foi a manifestação que você escolheu para o primeiro instante do seu nascimento. E assim também será quando você estiver prestes a dar o seu último suspiro.
Assim como a chuva equilibra as necessidades dos seres viventes, as lágrimas são o sal da terra que tempera o paladar de uma existência indiferente, apática e insípida.
Agora que a chuva parou, olhe de novo para fora. Examine se ficaram resíduos acumulados na vidraça. Observe mais de perto. Se você não estiver conseguindo enxergar com nitidez o que está do outro lado, as janelas da sua alma podem estar precisando de um polimento especial. Faça uso das suas lágrimas para esta tarefa. E, se necessário, sem moderação.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

POR QUEM OS SINOS DOBRAM?

Desde adolescente, eu já me interessava por Ernest Hemingway, escritor norte-americano que, aos sessenta e um anos de idade, ceifou a própria vida com um tiro de fuzil. E tanto é assim que, quando pude, visitei sua casa em Key West (EUA) e, anos depois, em Havana (Cuba), onde atualmente funciona um museu. 
A morte sempre foi uma constante em sua vida e em sua obra. Seu pai também se suicidou. Nunca se saberá se este tipo de influência é genética, psicológica ou comportamental. De toda forma, não custa mencionar que, certa vez, a mãe do escritor, a dona de casa e professora Grace, enviou-lhe pelo correio a pistola com a qual seu pai dera cabo à sua vida. Também nunca se saberá o que ela quis dizer com isto.
Do ponto de vista de quem vai, não há nada a dizer. Quem de nós poderá afirmar, com toda certeza, o que existe além da fronteira da vida-morte? Quem poderá demonstrar que há paz, ou tormenta, ou apenas um sono profundo e eterno? Quem poderá explicar se há consciência ou não? Ou castigo, ou inferno ou céu? Ou se tirar a própria vida é pecado ou é alívio, ou não é uma coisa e nem outra? Eu não tenho nenhuma resposta para estas perguntas e, sinceramente, também não tenho nenhuma crença precisa a respeito deste específico assunto.
Muito diferente, entretanto, é observar a morte do lado de cá, da perspectiva de quem sobrevive. Sim, digo "sobrevive" porque o despedir da vida nem sempre segue uma ordem previamente determinada. Não existe uma fila com senhas e às vezes a gente tem a impressão de que o critério é meramente aleatório. Aliás, estar vivo nos dias de hoje é quase como jogar com a roleta russa. E digo isso mesmo que você nunca tenha empunhado uma arma. Afinal, se der o azar de você estar em um determinado local e em um determinado momento, poderá acontecer de ser a sua vez, sem qualquer aviso ou preparação. Simples assim. Coisas inexplicáveis que talvez nem a fé consiga justificar.
Não quero falar sobre a dor de perder um ente querido. Este tipo de sentimento vai além do inexprimível e qualquer tentativa de expressá-lo certamente será insuficiente e imprecisa. Por isso, retrocedo alguns passos para falar da morte com distanciamento, sem nenhum envolvimento afetivo e emocional. Faço apenas breve reflexão sobre este fato inexorável da vida.
Uma das principais obras de Hemingway é o famoso romance de 1940 "Por quem os Sinos Dobram" (em inglês: "For Whom the Bell Tolls"), que narra a história de Robert Jordan, um jovem norte-americano das Brigadas Internacionais, o qual, como conhecedor de explosivos, recebeu a missão de mandar para os ares uma determinada ponte, por ocasião de um ataque simultâneo à cidade de Segóvia.
O livro é interessantíssimo, mas menos pela narrativa em si própria do que pela abordagem. O escritor, com maestria, trata soberbamente da condição humana e de sua precariedade. De acordo com relatos, a inspiração veio da obra "Poems on Several Occasions", do pastor e escritor inglês do século XVI John Donne, o qual, ao criticar os absurdos da guerra, dizia: "quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade".
Em tempos de tragédias e de mortes coletivas, compreendemos bem a assertiva, principalmente quando o desaparecimento foge à razão e à razoabilidade. Fatos assim nos tocam mais fundo porque nos colocam em contato com o imponderável, com o inimaginável, com o inadmissível e, acima de tudo, com nossos medos, nossos temores e nossos receios.
A comoção não se dá apenas pelos que se foram, mas também pelos que ficaram ou por aqueles que poderiam ter ido, sem um pingo de nexo lógico palatável.
Daí o choro, a indignação, o luto e a prece prolongada. Em tempos assim, questiona-se a razão de existir e de deixar de existir, de fazer e de deixar de fazer, de viver e de deixar de viver. Apenas um ser humano bastante desconectado de si mesmo não se deixará apanhar por um turbilhão de ideias, de sentimentos e de dores, que culminam na consciente conclusão acerca da impotência do homem em face de muitas questões.
A vida é um sopro, disse certa vez Niemeyer, falecido aos 104 anos de idade. Tenha ou não sido sarcástico, a frase não deixa de ser verdadeira.
Pois quando o vento apaga a chama, não há mais nada a fazer. Apenas acende-se a vela. E reza-se. E, não com muita dificuldade, compreende-se na inteireza a resposta ao título desta postagem, nas palavras do próprio Donne, repetidas séculos depois por Ernest Hemingway: "Nunca procure saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti".

(Igreja não identificada - foto extraída do Google)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O QUE EU APRENDI ESSE ANO

O ano não acabou, é verdade. Mas faltam poucos dias. Se não para o fim do mundo, certamente para o final do ano propriamente dito. E é hora de começar a fazer o balanço dos meses, das semanas, dos dias, das horas, dos minutos, dos segundos.
Aprendi muito em cada uma destas frações existenciais do tempo.
A passagem dos meses me mostrou que o fortalecimento pode ser razoavelmente estável. Que nem sempre precisamos ter recaídas de tristeza e de desesperança. Que é possível navegar em águas calmas até o outro lado do oceano.
O transcurso das semanas me ensinou que é viável, sim, planejar e organizar-se. E, acima de tudo, realizar projetos em relativamente curtos períodos de tempo, de forma segura e responsável.
O transcorrer dos dias revelou que em pouquíssimo tempo se constroem amizades e sonhos. Não é necessário muito tempo para estabelecer laços e vislumbrar a concretização de um ideal.
O tique-taque das horas evidenciou que num breve piscar de olhos coisas impensáveis podem acontecer e mudar. Não temos controle sobre quase nada em nossas vidas. E, paradoxalmente, podemos ter integral controle sobre os nossos pensamentos.
O pulso dos minutos contados me contou sobre a possibilidade de cantar a alegria em momentos efêmeros e significativos. Num piscar de olhos, decide-se, avança-se, constrói-se. O relógio não para nunca, nem o físico, nem o biológico, nem o mental, nem o espiritual. O amor não precisa de quase nada para se manifestar. E nem também qualquer outro sentimento. Apreender a vida, reter a emoção, respirar o instante e ouvir o coração são ações que não se condicionam a nada que não seja você mesmo.
E os segundos... Ah! os segundos... São miraculosos, mágicos e reticentes. Explodem dentro de nós como faísca. E ainda assim contêm toda a eternidade. Em um segundo, é possível compreender o significado daquilo que demoramos vidas inteiras para perceber com clareza.
Os segundos são a nossa existência na forma de sua potencialidade máxima.
A dor que dói agora é sempre a mais vigorosa. O amor que se sente agora é sempre o mais poderoso.
Porque é apenas no agora que a mudança se manifesta e que a alma se transforma. O antes e o depois têm pouquíssima importância, pois é sempre no agora que você se emociona, vibra, acredita, sente, suporta, chora, sorri, sofre, recomeça.
É neste exato segundo que você compreende o resultado do ontem, do anteontem e de qualquer  momento do seu passado. E é neste exato segundo que se forma o amanhã, o depois de amanhã e qualquer partícula de um futuro seu.
Você acabou de envelhecer um átimo. E tudo o mais agora já é lembrança, memória, nostalgia. Ou apenas uma visão enevoada e incerta do próximo amanhecer. Porque somos seres livres mas somos também prisioneiros do ciclo interminável de uma inevitável sequência de agoras.

(Ave no Himalaia, Nepal - foto extraída de Catch Themes)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

OS NOSSOS PRIMEIROS DESENHOS

Não posso falar por todas as mulheres do mundo. Falo apenas por mim. A cada ano, quando meu aniversário se aproxima, sinto um certo desconforto, interior e exterior. Não. Na realidade, o desconforto exterior é na verdade interior: é uma certa insatisfação com a imagem que você vê no espelho.
Muito anos se passaram desde que você fez o seu primeiro desenho com lápis de cor. E se você se lembrar direitinho, vai ver que aqueles primeiros rabiscos já eram uma espécie de projeto de vida.
Do quanto me recordo, meus primeiros rascunhos em menina eram casinhas com chaminés fumegantes e cerquinhas brancas repletas de flores. Sempre havia também uma lagoa com alguns patinhos amarelos. Vivi neste cenário um bom par de anos, até que a imagem mudou. Um pouco maior, meus desenhos agora eram estradas cujas bordas convergiam no infinito. Nunca tive uma veia artística muito acurada, mas relembrando aquelas imagens, constato que a perspectiva que eu imprimia era bastante realista: as árvores que ficavam à margem da rodovia iam diminuindo de tamanho em direção ao horizonte. Por fim, um pouco mais mocinha, passei a desenhar ilhas com coqueiros, circundadas de um lindo mar ondulado e com a presença soberana de um enorme sol com raios fulgurantes.
Depois que eu cresci, abandonei esta minha arte. Afundei-me nos livros, em atividades esportivas de mil espécies e nas sapatilhas de ballet. Eu já não tinha tempo para me dedicar a aqueles antigos projetos.
Quando finalmente me tornei adulta, percebi que minha vida não se parecia em nada com aquilo que eu havia idealizado. O casamento desfeito me conferiu a certeza definitiva de que eu jamais iria morar naquela casinha cor de rosa de cuja chaminé saía a fumaça de deliciosos bolinhos de chocolate.
Morar em uma ilha deserta no meio do oceano também estava fora de questão. Meu habitat, agora, era uma cidade cinzenta, poluída e cheia de gente. E, quanto à minha estradinha, também nunca foi muito fácil encontrá-la: meu dia-a-dia passou a ser a correria, os compromissos, o trânsito e a falta de tempo.
Pensando em termos pragmáticos, pode-se concluir que eu não era lá muito feliz. Mas, para ser justa comigo mesma, infeliz eu também nunca fui. Apenas me deixei guiar pelo curso da vida e sempre afirmei a mim mesma que minha vida não tinha sido nem melhor e nem pior do quanto imaginado: apenas diferente.
Um dia, porém, tudo mudou. Não foi um estalo,  um milagre ou uma visão. Foi apenas uma mudança. Tudo mudou como tem de mudar quando você está em processo de amadurecimento. Por acaso uma semente se parece com uma fruta madura?
Do nada, veio a percepção. A felicidade não é algo estático, idealizado e imutável. Tal como ocorreu em nossa infância, nossos desenhos também  continuaram se modificando vida afora. Sendo assim, não há razão para frustrar-se com a não realização daqueles primeiros sonhos. Contabilize quantos projetos e planos você pôs em prática desde então.
Na verdade, tal qual aquele barquinho no mar azul, em nossas vidas fizemos inúmeras correções de velas e lemes que, felizmente, nos conduziram até este ponto.
De igual maneira, a perspectiva da estrada também continua existindo. Será que desde aquela época já não pensávamos, inconscientemente, que aquela era a via da nossa  própria existência?
E a casinha, ah, a casinha. É claro que ela existe dentro de nós, pois é lá que guardamos todos os nossos tesouros mais preciosos.
Pode parecer uma bobagem, mas foi uma descoberta e tanto. Porque se os desenhos não eram mais os mesmos, também não eram lá tão diferentes. A matéria-prima pode ter mudado, assim como as cores dos papéis e das canetas. Isto é fato inexorável. 
Mas é também inquestionável que é a mesma mão que ainda segura os pincéis e os lápis de cor. Porque no fundo, embora tenhamos de nos submeter ao implacável passar do tempo, sabemos que somos as donas de  nossos cadernos e de nossas representações. A quem eu, humildemente, poderia chamaria de sonhos.

(Parque Guell, Barcelona - Espanha - foto extraída de Google)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A ONDA E A ALMA

Esta história é verdadeira e aconteceu muitos e muitos anos atrás. Começou num inocente café numa terça-feira qualquer de um longínquo mês de abril. Ainda era cedo, antes das dez horas da manhã, quando minha alma mergulhou no oceano azul do par de olhos mais belos e sinceros que eu conhecera em minha vida. Eu nunca havia sentido tal imensidão. Uma onda me invadiu e me arrebatou. E durante os três anos seguintes eu tive certeza de que aquela onda se chamava amor. 
Não, não é isso que você está pensando. É muito mais. Esse amor era cristalino como a água e profundo como o mar. Era assustador e cálido, forte e suave. Suas ondulações eram capazes de me transportar para lugares nunca antes visitados e de me elevar acima da linha do horizonte.
Na maré cheia, ele era vigoroso, produtivo, potente. Na maré vazante, ele era triste, dilacerante, fugidio.
Mas ele sempre esteve ali, nunca me abandonou. Havia adversidades, dificuldades, impossibilidades. Mas amor assim é leal, persistente, eterno. Não morre jamais.
Neste tipo de amor, o corpo pode ser casto porque é a alma que se desnuda. Ele acontece quando você pode ser você mesma e quando sua mente e seu coração simplesmente sabem e compreendem.
O dono dos olhos azuis costumava dizer que amava a minha forma de ser e de pensar. E é fácil entender o por quê. Nós conversávamos sem falar, nos amávamos sem tocar e sonhávamos sem dormir.
Este amor era uma tela branca à frente de um artista. Ali era possível projetar todos os nossos desejos e planos, dos possíveis aos imaginários. A escolha das tintas, das cores, dos pincéis e das paisagens era somente nossa, o que fez deste amor a obra-prima dos seus criadores.
Este amor era cheio de sons, de risos, de cordas e de gaitas escocesas. Músicas que ecoarão por toda a eternidade. 
É certo que houve desencontros, erros e lágrimas. Como sempre acontece. Mas isso não tem a menor importância, porque o que hoje se recorda são a paixão, as certezas e as emoções incomparáveis.
Dizem que a parte mais erótica das pessoas é a sua alma. Faz sentido. O verdadeiro valor de uma pessoa está na capacidade de ser vivo, inteiro e autêntico. E nada pode ser mais atraente do que isso. Sherazade, de acordo com os manuscritos das Mil e Uma Noites, em um fragmento do século IX, livrou-se da morte e salvou sua alma pela habilidade de contar histórias, noite após noite. Mesmo aprisionada, ela não se entregou ao rei e ele a libertou.
Muitos anos se passaram. Muitas experiências vieram. Mais de uma vez, os oceanos foram cruzados, para o leste e para o oeste, e nunca mais o vi. Mas sei que ele está bem e é isso o que me importa.
As ondas da vida podem, muitas vezes, te carregar de um lado para o outro. Faz parte da nossa existência terrena, essa sim, frágil e fugaz.
Mas o amor, ah, o amor! Essa espécie de amor não morre simplesmente. Pode transformar-se, amadurecer, mudar de rosto, de corpo, de lugar e de condição. Mas a sua essência é perene como é a alma humana. E é profunda e misteriosa como é o oceano. 
Felizes aqueles que, ao menos uma vez em suas vidas, possam se deixar levar pelas correntes e pelos ventos, apenas fechando os seus olhos e entregando-se. É possível que, ao menos por uma fração de segundo, você possa se sentir flutuando e tocando a face da eternidade.

(Waves in Pacifica, California, USA - fonte: wikipedia)

domingo, 23 de setembro de 2012

A LEVEZA E O PESO DO SER

Existem duas coisas que eu tenho o prazer de nunca haver possuído: televisão no quarto e balança no banheiro. Nem mesmo na década de oitenta, quando todos os jovens enlouqueciam para ter uma televisão só sua e um vídeo-cassete de última geração, senti vontade de ter uma só para mim. Meu irmão, não. Sempre adepto da tecnologia, logo conseguiu com meus pais uma televisão somente para ele e um protótipo do que viria a ser hoje um rudimentar computador de uso pessoal. Mas minha opção não tem nada a ver com a falta de uma veia consumista. Ao contrário, sou tão seletiva que cada ambiente da casa tem, para mim, que ostentar apenas sua específica função. Quarto é só para dormir. Por isso mesmo ele se chama dormitório. E a televisão merece uma sala só para ela. Esta é a dinâmica da minha casa. E então, quando vou para os meus aposentos íntimos todas as noites, não levo comigo as lágrimas dos filmes, as risadas das comédias e a violência dos noticiários. Tudo fica lá fora e, assim, consigo ter noites muito mais leves e tranquilas, sem o peso das emoções exteriores.
Já a questão da balança é muito diferente. Nunca concebi que eu pudesse manter um instrumento dentro de casa capaz de me subjugar. Não consigo me imaginar aferindo meu peso corporal uma ou duas vezes ao dia apenas para me torturar. Porque, verdade seja dita, você não precisa da balança para saber a quantas anda a sua condição. Para isso, basta uma calça jeans, que, indubitavelmente, possui a necessária precisão científica capaz de aferir o acréscimo de um único grama.
Fala-se muito em leveza da alma e em leveza do corpo. Mas não são eles parâmetros absolutos para medir o grau da sua felicidade. Principalmente se não andarem juntos. Porque de nada adianta a leveza do corpo se a sua alma é pesada e carrega consigo toneladas de mágoa e de rancores. E também de nada vale a leveza da alma se o seu corpo acumular resíduos tóxicos de alimentos, bebidas, cigarros, medicamentos ou qualquer outra droga, lícita ou não. De igual maneira, você será incapaz de voar.
Mas para tudo na vida, exceto para a morte (a morte pertence à vida?), há uma solução, que é o lento caminhar. Ele funciona sempre, para as questões do corpo e para as questões da alma. Funciona para o corpo porque, paulatinamente, põe em ritmo o seu metabolismo e acelera a sua queima calórica. Qualquer mulher sabe disso. E funciona para a alma porque somente com a perseverança e com o passar do tempo é possível livrar-se de certos pesos inúteis, como a culpa, o ódio, a baixa auto-estima e a falta de perdão.
Como em qualquer dieta, os resultados imediatos não são definitivos. Para a efetividade do processo de leveza, é preciso muita paciência e compaixão consigo própria. Nem para o corpo e nem para alma é bom você se castigar para atingir os seus objetivos. É necessário, antes de mais nada, compreender os processos. Sem a compreensão, não haverá aproveitamento positivo. Então é bom que você se informe e que se cerque de um ambiente propício. Estude a si mesma e conclua o que precisa ser mudado. Selecione melhor suas compras e evite entupir seu carrinho com deliciosas guloseimas. Selecione melhor seus amigos e evite trazer para casa os tentadores seres predatórios da sua vitalidade e da sua auto-confiança. Aproprie-se apenas daquilo que é bom, que eleva, que produz. Descarte o que é negativo, o que arrasta, o que prende e o que condena. 
E siga caminhando. Quando se cansar, volte aos seus aposentos sagrados e deixe lá fora todas as dificuldades. Estique seus lençóis mais bonitos, afofe seu travesseiro, feche a cortina e feche seus olhos. Nada ali vai te perturbar. E quando o sol da nova manhã raiar horas depois, abra a janela e abra o seu coração. Olhe-se no espelho e tente ver se alguma coisa mudou. Faça isto antes da maquiagem, quando ainda não há nada entre a gente e a gente mesma. Se algo mudou, parabéns. E se nada ainda parece ter mudado, apenas caminhe lentamente mais este dia. É assim mesmo. Demora um pouco para ver a germinação da semente.

(Pôr do sol em Paraty, Brasil - foto extraída de http://www.globeimages.net/img-mackerel-sky-over-parati-bay--brazil-424.htm)

domingo, 16 de setembro de 2012

COMPREENDENDO OS CICLOS

Mulheres com asas são fortes, mas caem. São persistentes, mas desanimam. São audaciosas, mas desistem. E são assim porque são mulheres e porque seu ritmo é ondulatório. As mulheres são criticadas por serem instáveis, mas reduzir o que acontece com elas a este mero estigma não parece justo. Há muito mais por trás da psique de uma mulher. 
Para começar, a mulher é um ser sensível e, por isso mesmo, parece natural que oscile em razão dos acontecimentos exteriores e interiores. Além disso, as questões hormonais não se inserem no campo do psicológico ou do imaginário. Esta espécie de alteração é capturável por instrumentos científicos. Por fim, é da natureza da mulher caminhar em ondas ou ciclos, por mais determinada que ela seja.
Uma mulher é facilmente capaz de dar dois passos para a frente e um para trás pra chegar aonde precisa. Não se trata de indecisão. Muitas vezes, as mulheres precisam apenas recuperar o fôlego, examinar melhor o terreno em que caminham ou se prepararem para um passo mais ousado. Isto não é um defeito, é uma característica. Aliás, eu diria que se trata de um atributo positivo, pois revela preocupação, cautela, e consciência, inclusive dos próprios limites.
Mesmo a mais arrojada das mulheres sabe, instintivamente, até onde pode ir. E quando ultrapassa a linha do aceitável, põe-se em contato consigo mesma para retroceder e retomar seu auto-controle e sua auto-estima. Quando uma mulher não consegue fazer isso, provavelmente está doente e precisando de muita, muita ajuda.
As mulheres são seres que analisam, investigam, conferem, verificam, checam e inspecionam. E não são assim por pura maldade, curiosidade ou por defeito de caráter. São assim porque precisam conhecer o solo em que pisam e necessitam se certificar da adequação do terreno em que estão trilhando. O preço disso é que muitas vezes são mal compreendidas e julgadas.
Mas isso não tem a menor importância. Um julgamento não muda uma essência. E a essência da mulher é perscrutar o ambiente até que nele se sinta bem. As coisas são como são. E é assim com a mulher.
Às vezes, quando nada parece funcionar, é preciso ajustar as velas e mudar de direção. E às vezes é preciso recuar. Ou para ir embora de vez, ou para ganhar impulso e poder atravessar a fronteira. De todo modo, quando a mulher parece estar retrocedendo, na verdade ela está recuperando as suas energias para empreender uma mudança.
Quando a mulher cai, pode se sentir muito só e infeliz. Mas em muitos casos só mesmo seu afastamento pode ser sua salvação. Quem aprende a viver sozinho suporta melhor as dificuldades. Mas em muitas situações, o movimento de marcha-à-ré inclui a coletivização dos seus sentimentos. Não há quem duvide que a terapia entre amigas é o mais eficaz remédio que existe.
As mulheres devem compreender e aceitar os seus ciclos como parte da sua existência. Sentir-se desvitalizada ou desanimada é um efeito colateral da premência de uma mudança.
As aves migratórias vêm sendo estudadas e não há uma constatação unânime para a razão deste comportamento. O que se sabe é que algumas espécies voam milhares de quilômetros somente para encontrar melhores condições meteorológicas e alimento. Os estudiosos ainda procuram novas explicações, mas me parece que estas duas causas já justificam o esforço.
Quando uma mulher estiver insatisfeita com o seu ganha-pão ou com seu habitat, pode ser hora de partir. Observando os fenômenos naturais, constata-se que, em poucos casos, imitar a natureza não será sábio. Sendo assim, quando não estiver se sentindo bem, estude e questione as suas causas. E a  partir de suas conclusões, você poderá então decidir entre dedicar-se a seu ninho ou bater asas rumo a um novo horizonte.

(Praça de São Marcos, Veneza, Itália - foto extraída de www.google.com)

sábado, 25 de agosto de 2012

A CANÇÃO QUE VEM DE DENTRO

Nos momentos de tristeza, gosto de ouvir uma boa música, de preferência que me emocione ainda mais. A música, para mim, acalma, eleva, tranquiliza. Pode parecer que uma música melódica acentue um senso de nostalgia. Mas não é bem assim. Os sons das boas músicas são mágicos e possuem chaves capazes de abrir portas e janelas. E, se às vezes não podem abri-las, são capazes de atravessar as suas paredes.
A música é um elemento atemporal. Cruza oceanos, eras, idades, sentimentos. Não morre nunca e sempre é  transmitida. Já era assim séculos e séculos antes da globalização.
As mentes e os corações gravam tons, melodias, harmonias e ritmos e sempre os reconhecem. Não se sabe ao certo onde as memórias musicais ficam guardadas, mas, se uma música possui significância, possui também o poder de escancarar comportas secretas sem pedir licença ou desculpas.
Os sons vêm e as memórias simplesmente se despertam. Memórias do que vivemos, do que não vivemos, do que poderíamos ter vivido, do que nunca viveríamos, do que nunca viveremos.
Não conheço meio de transporte mais eficaz que a música. Mas não sei dizer se é você quem a leva no coração ou se é ela quem te conduz.
Nunca tive tino musical. Além de algumas poucas aulas de flauta doce e de acordes desajeitados no violão, nunca produzi som melódico algum. Mas não tem problema porque, em lugar deste dom, fui contemplada com a possibilidade de bem escutar o que a música tem a me dizer.
Os sons em si são palavras com significado. Uma música instrumental pode revelar uma vida inteira e os mistérios de toda uma existência. E os intervalos entre as notas são tão belos quanto os sons  que se coordenam por um maestro. Quem consegue caminhar sem o necessário espaço entre um passo e outro nas trilhas dos nossos caminhos? Há quem diga que a música é o silêncio interrompido pelas notas. Não cheguei a uma conclusão e este é, para mim, o maior segredo que as partituras guardam caladas.
Como muitas coisas da vida, a música em si mesma é um mistério que não se compreende: apenas se aprecia. A boa música que toca ali fora toca também seu coração de forma a interferir no seu ritmo existencial. É a reverberação da arte desnudando a sensibilidade de quem escuta.
Não menospreze a música, nem na alegria, nem na tristeza, nem na saúde, nem na doença. Não desconfie do seu poder curativo, emocional, energético.
Suspeito que os músicos sejam magos. Talvez porque eu não os entenda. Mas você não precisa mesmo entendê-los para respeitá-los. Os músicos em si próprios são instrumentos de emoções. Eles compõem com sua sensibilidade e, com esta, tocam o seu ser.
Quando eu gosto de uma música, posso ouvi-la um milhão de vezes. E, quando chego a este ponto, algo dentro de mim começa a despertar. Pode ser a compreensão de um fato, pode ser a resolução de problema, pode ser o perdão de uma pessoa, pode ser a saudade de outra. E aquilo que brota em mim finalmente desabrocha, agora em forma de prece.
A música não precisa ser sacra para tornar uma pessoa mais sábia ou, pelo menos, mais consciente de si. Porque a boa música pode ser de qualquer gênero ou estilo. E ela será boa na exata medida da sua  capacidade de transformação.
E nem vou falar dos sons da natureza, que são sagrados em sua essência. Falo mesmo das canções dos homens, das mulheres, das crianças, dos povos, dos fortes, dos fracos, dos gigantes e dos pequeninos. Porque toda boa música que existe desdobra-se na paz. E toda a paz que se cria enseja um cântico de louvor. E todo louvor que se reconhece encerra gratidão. Pela mera dádiva de ouvir e de viver.

(Fiordes na Noruega - foto extraída de Google)

domingo, 12 de agosto de 2012

O NINHO VAZIO

Sumi por mais de dois meses mas finalmente reapareci porque não é do meu feitio abandonar as obras começadas para deixá-las inacabadas. Na verdade, embora não justifique por completo o meu desaparecimento, há para o fato uma explicação. Ausentei-me do país para cursar um Mestrado em Direito Comparado. Caso você não saiba, algumas universidades estrangeiras disponibilizam os chamados "programas de verão", de modo que, de maneira condensada, você conclui seus créditos sem precisar mudar-se de mala e cuia para o exterior. Após rigorosa prova de seleção, que contou com um exame escrito e com um exame oral em inglês, fui aprovada em terceiro lugar para o programa da Samford University. Meus créditos deverão ser concluídos em um total de quatro meses, o que significa dizer que, se tudo der certo, ano que vem fico fora por mais dois meses. E, após a conclusão dos créditos, terei mais três anos para a apresentação da minha tese. 
A experiência neste período foi incrível. Passei um mês estudando na Cumberland School of Law, em Birmingham-AL (USA), e outro na University of Cambridge, em Cambridge (UK), o que me fez rejuvenescer cerca de vinte anos, já que, aqui, fiquei em um dormitório na própria faculdade (Sidney Sussex College - Cambridge University), exatamente como se vê nos filmes: um pequeno quarto com uma cama de solteiro, um armário para roupas, uma escrivaninha, algumas prateleiras, um frigobar antigo e uma cafeteira. Não havia televisão, nem interfone, nem qualquer comodidade  típica de hotel. Puro despojamento.
Nesses dois meses e pouco, meus pais, que moram muito perto, fizeram a gentileza de cuidar da minha correspondência, de abrir as janelas do apartamento e de aguar as minhas plantas. Não fosse isso, o ninho teria ficado completamente abandonado e vazio. Quer dizer, vazio ele ficou. Ou melhor, vazio ele sempre é, não fosse mesmo pela minha ilustre presença.
Muito superficialmente, já li algo sobre a chamada "Síndrome do Ninho Vazio", que, em poucas palavras, pode ser entendida como o esvaziamento físico da estrutura familiar e que cede lugar a uma incontornável sensação de abandono e de solidão.
Embora eu seja divorciada há muitos anos e embora meu filho não more mais comigo há um certo tempo, particularmente não experimentei essa contundente sensação, o que, confesso, me deixou um pouco intrigada. Refletindo melhor, porém, atribuí a ausência de sofrimento ao fato de que tenho pautado minha vida em cima de uma sequência interminável de desafios pessoais, sem a concentração de minha energia em um único ponto, e o que não me desmerece, em absoluto. Acho que fui e que continuo sendo uma ótima mãe. Porém, com certa naturalidade aceito as circunstâncias cambiantes da vida, de modo que a tristeza pela partida de meu filho não se prolongou além do necessário. Aliás, considero extremamente estimulante ver, ainda que a uma certa distância, os seus progressos pessoais e profissionais. É um pássaro que já se aventura a seus próprios voos-solo. E, por isso mesmo, o ninho ter ficado vazio, ao menos para mim, não foi necessariamente triste ou ruim.
Quem convive comigo sabe que costumo dizer que as mulheres com asas não moram em casas, mas sim em ninhos. E digo isso porque casa parece ser um local físico muito insípido e impessoal. Os ninhos, ao contrário, são construídos artesanalmente, com amor e dedicação. Às vezes eles demoram anos para ser finalizados. E por isso mesmo, de uma certa forma, têm muito mais valor.
Eu amo a minha morada. É aqui que me encontro a mim mesma no final de cada dia. É aqui que guardo meus tesouros preciosos e também aquelas coisinhas aparentemente sem importância, mas que contam a história da gente. Tenho uma gavetinha onde estão armazenadas todas estas lembranças e quando estou prestes a me desconectar de mim, reavivo minha memória examinando aqueles pequeninos objetos carregados de emoção.
Meu ninho é o local do meu repouso, da minha meditação, das minhas orações. É também o lugar onde posso preparar nutritivas refeições e onde posso ouvir música, dançar e cantar. E é por isso  que tenho tanto respeito por ele.
Vira-e-mexe, acontece de eu me ausentar, como aconteceu nestes últimos dois meses. Mas nunca deixei de me lembrar que ele ficou ali, me esperando como sempre esteve, e a postos para me receber de volta de maneira afável e íntima.
Sinceramente, não vejo a história do ninho vazio como uma desvantagem na vida das mulheres com asas. Se você ficou sozinha porque motivo seja, mesmo que sua única atividade tenha sido dedicar-se à família pelos últimos mil anos, acho que é hora de você aproveitar com exclusividade  o seu precioso ninho. Se puder, mude alguns móveis, objetos ou as cores das paredes. Compre alguma coisa nova e não se esqueça de sempre manter algumas flores frescas no seu quarto. Abasteça sua geladeira com alimentos saudáveis e saborosos e seu guarda-roupa com itens do seu próprio gosto. E, principalmente, trate de você mesma com carinho e cuide do seu desenvolvimento pessoal. Corra para um novo trabalho, para um novo curso, para uma nova atividade. Aproveite a bênção do tempo livre que a vida agora te deu. E estabeleça laços muitos sérios com seu ninho, porque é ele quem te receberá no encerrar de cada dia.
E se, a final, qualquer hora você estiver cansada dele, como pode acontecer em qualquer relacionamento, tire um tempo e fique longe. Sem traumas e sem ressentimentos.
Quando você voltar, tenho certeza de que vocês farão as pazes e que você terá imenso reconhecimento e gratidão à vida por ter um abrigo cálido à sua espera e uma confortável cama que te abraça todas as noites sem qualquer exigência ou repreensão.

("Punting" no River Cam - foto extraída de http://www.connectedcambridge.com/)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O AR QUE EU RESPIRO

No ano de 2010, resolvi fazer o famoso trekking até o Campo Base do Everest, seguindo trilha a partir do Nepal. Sei que esta história já até virou rotina neste Blog, mas preciso dizer que, mais uma vez, não consegui encontrar um boa alma que encarasse a aventura comigo. Aliás, quanto a esta questão, devo admitir que, após repetidas experiências, tornei-me um pouco cética quanto à possibilidade de encontrar companheiros de viagem para as minhas escolhas. E, assim, passei a buscar eu mesma o que havia de disponível no mercado. É claro que esta viagem não pode ser realizada sem uma equipe. Tratei, então, de pesquisar as agências brasileiras que organizam grupos e, depois de alguns telefonemas, acabei fechando com a Venturas e Aventuras para a saída do mês de outubro daquele ano.
Meus dois joelhos são operados e tive receio de sentir dores no percurso, pois são muitas horas de caminhada durante aproximadamente dezesseis dias na montanha. Dediquei-me, portanto, um bom trabalho de isometria que deu muitíssimo certo.  Não senti nenhum incômodo. Além disso, rapidamente comprei uma bota para amaciá-la, o que se mostrou absolutamente essencial. E, ainda antes da nossa partida, tivemos uma reunião na agência de turismo para conhecermos os demais passageiros. O grupo era formado por cerca de doze pessoas avulsas, mas não necessariamente solteiras ou descasadas. O fato é que o gosto por este tipo de viagem é algo tão específico que, ao menos ali, não foi possível reunir sequer um casal. Os casados que havia seguiram sós com seus devidos alvarás conjugais.
A viagem até Kathmandu, Capital do Nepal, é bastante longa. Seguimos via Istambul, o que foi muito bom, pois, praticamente pelo mesmo custo, um outro país acabou por ser incluído no roteiro. É certo que não deu para conhecer muita coisa. A única pernoite, porém, me deixou com muita vontade de retornar à Turquia. De lá, seguimos para Delhi, onde tivemos mais uma noite antes de seguir a Kathmandu. E, desta Capital, pegamos aquele famoso aviãozinho que aterrissa em Lukla, aos pés do Himalaia, em uma pista de pouso curtíssima e que termina em inclinação ascendente para que a aeronave consiga frear a tempo de não deslizar para fora. E é ali, em Lukla, que a aventura propriamente dita se inicia.
A rotina dos dias na montanha é mais ou menos a seguinte. Suas pernoites são feitas em lodges, que são uma espécie de hospedarias muitíssimo simples. Nos primeiros vilarejos, ainda é possível que você consiga se alojar em um quarto com banheiro. Mas, conforme você vai avançando, esta comodidade simplesmente deixa de existir e, a depender do local, você poderá encontrá-la no fundo do corredor ou do lado de fora, a alguns metros de distância. A água quente é rara também e você tem que pagar por ela para utilizar um sistema de baldes. Abro aqui um parêntese. O frio que senti na montanha foi tão intenso e os banhos se mostraram tão desconfortáveis, que transformei este hábito em gênero de quinta necessidade. Que ninguém me ouça.
As paisagens do trajeto são exuberantes e você chega a se questionar se por acaso não mudou de planeta sem perceber. E o povo é tão simpático e amoroso que você se desconecta da palavra cansaço, mesmo após muitas horas seguindo a pé montanha acima.
É claro que a viagem não é fácil e que isso não é novidade para ninguém. Mas o ponto crucial do sucesso é mesmo a resposta do seu corpo à ausência de oxigênio. Com o passar dos dias, o ar realmente começa a faltar e coisas estranhas podem acontecer no seu organismo. No meu grupo, houve pessoas que não puderam prosseguir em razão de reações orgânicas que o conhecido "mal da montanha" acabou por provocar. Não senti efeitos impactantes no meu corpo, à exceção de uma crônica dor de cabeça e de algum mal estar à noite. Mas, bem ou mal, e com a ajuda de muitos comprimidos, acabei prosseguindo e cheguei até o meu objetivo. Depois disso, confesso, senti-me esgotada para começar a descida e, junto com outros dois companheiros de jornada, rateamos o custo de um helicóptero para antecipar o retorno a Kathmandu. Boa escolha.
Obviamente, é impossível narrar em uma única postagem tudo de bom e de ruim que acontece numa longa viagem. Mas o que eu quero deixar claro é que, apesar das adversidades, a jornada valeu muito a pena. Valeu apesar do desconforto, das restrições, das dores, do cansaço, do peito arfando, do frio, da comida, de pessoas não muito legais, de alguns guias despreparados e de muitas situações inconvenientes. Afirmo e explico: quando você se encontra em situações adversas, em que sequer o ar se acha convenientemente disponível, não há tempo para elocubrações. Os subjetivismos, as ponderações, as mágoas, as diferenças, a vaidade, a volúpia e toda a gama dos imponderáveis sentimentos humanos simplesmente desaparecem como em um passe de mágica. Na verdade, sob tais condições, tudo o que você deseja é viver e sobreviver. É incrível como uma mera viagem pode mudar a perspectiva de toda uma vida. No meu caso, esta percepção foi imediata e jurei a mim mesma parar de reclamar por qualquer bobagem ou insatisfação.
E embora eu não deva me intrometer na vida alheia, quando vejo alguém protestando e sofrendo inutilmente, minha vontade é de simplesmente dizer à pessoa: "você reparou que você está respirando?". É quase o que basta para que possamos permanecer de pé no planeta.
Sendo assim, quando você se sentir contrariada, respire, inspire, expire e relaxe. E você perceberá, então, que a salvação e a cura da sua alma podem, miraculosamente, residir no plano do próprio invisível. E, o melhor: sem necessidade de fé, crença ou religião.

(montanhas do Himalaia nas proximidades do Monte Everest - foto: acervo pessoal)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

UM SÁBIO CHAMADO TEMPO

Era uma vez um sábio chamado Tempo. Tempo era tão culto e erudito que, nos quatro cantos do mundo, era conhecido como o Senhor da Razão. Tempo não falhava. E também não faltava. Não falhava porque, mais dia, menos dia, as coisas confiadas a ele sempre acabavam por acontecer. E não faltava porque nunca se recusou a estar à disposição das coisas e das pessoas. Entretanto, apesar de sua notável perfeição e sapiência, Tempo nunca foi um ente muito bem compreendido e parte disso sempre se deveu à dificuldade de aceitar que, contra ele, não existem argumentos ou ações. Tempo é soberano e é praticamente intransponível.
Em um certo sentido, Tempo tem sido acusado de ser cruel e implacável. Através de seus olhos, é possível observar-se a beleza, a saúde e a vida se esvaindo até seu completo desaparecimento. E não há ninguém, nem ciência e nem religião, capaz de deter esta força. Questionado sobre tais angústias humanas, Tempo tem se limitado a responder que as coisas simplesmente são assim. E são assim porque nada no mundo é estático e porque o fluxo da vida segue em uma direção de mão única. Cada célula dos nossos corpos encontra-se em processo de envelhecimento desde ao menos o dia do nosso nascimento. E, se é assustador pensar assim, serve de alento o fato de que esta é uma verdade fisiológica universal, comum a todos os seres vivos.
Tempo tem explicado que, na vida, as coisas tem um começo, um meio e um fim e que acontecem como têm que acontecer, por razões muito intrincadas e complexas relacionadas com esta enorme teia de interações que rege o universo. Sendo assim, por mais que alguém se esforce, é impossível apreendê-las e retê-las.
Mas Tempo tem também um lado muito benevolente. É por meio de sua ação que a maior parte do sofrimento humano transforma-se em mera lembrança e é pela graça de suas mãos que uma enorme gama de problemas acaba se resolvendo de uma forma bastante natural e quase milagrosa. Tempo é curativo, eficiente e aliviador. Basta ter paciência, o que, entretanto, não parece ser muito fácil.
Em meio a dores e inquietações, o homem tem pressa em entender o que com ele se passa. Quer saber porque algo aconteceu ou deixou de acontecer, principalmente quando o resultado esperado não é atingido. Quer saber porque caiu, perdeu, fracassou, faliu, foi traído, foi trocado, foi ofendido, foi magoado, foi agredido, foi desrespeitado. Ingenuamente, procura conselhos e respostas imediatas. Ele ignora que a compreensão exata dos acontecimentos depende do Tempo. Após repetidas experiências, deveria ter a humildade de aceitar este postulado universal e simplesmente saber esperar.
Tempo também foi indagado sobre estas questões e sobre o funcionamento deste mecanismo. Ele ilustrou da seguinte maneira: "Imagine que você estivesse observando um enorme tabuleiro. Você concorda que seria possível, ao observador, explicar e prever as interações, os encontros e as quedas de cada um dos pequenos seres que caminham sobre a superfície? Ter esta visão é como conhecer o passado, o presente e o futuro".
Nós, seres humanos mortais, não possuímos este dom, pois fazemos parte deste tabuleiro. Nossa visão é muito parcial e limitada e não conseguimos olhar em todas as direções com o alcance necessário. Somos tão minúsculos em meio a aquela teia que nunca chegaremos a compreender todas as causas, consequências e condições.
Há, porém, a possibilidade de algumas respostas. Aguardando o necessário, poderemos olhar para trás e então, já com um certo distanciamento, conseguiremos ver com alguma clareza os caminhos percorridos até um determinado resultado. Esta é a bondade do Tempo. Se ele não nos confere a dádiva de antever o futuro, ao menos nos concede meios de compreender o passado e, consequentemente, o presente.
Se hoje você tem questões não respondidas, aguarde mais um pouco. Seja gentil com você mesma e com o Tempo. Não se agrida, não se torture, não se esgote. As respostas possíveis virão quando você tiver caminhado mais além e quando houver subido a montanha que lhe fará enxergar melhor os rastros da sua existência. E quando você tiver alcançado o topo de sua fé e da sua alegria, o Tempo, em sua ação que nunca falha, trará a cura e erguerá, com suas asas, o véu de muitos mistérios.

(Big Ben, Londres, UK - foto extraída de http://www.edwud.com/)

terça-feira, 15 de maio de 2012

NAS ASAS DA PAIXÃO

Se existe um assunto acertado em termos de satisfazer a curiosidade feminina, este tema é a paixão. Acho normal. As mulheres são seres apaixonados em sua essência e falar sobre a paixão é falar sobre algo que lhes é muito familiar e muito antigo. É claro que cada uma de nós tem a sua própria história. Mas é certo também que a primeira paixão nasceu muito cedo, quando éramos apenas meninas. Naquela época, a paixão que sentíamos dentro de nós provocava a mesma sensação que correr em meio a bosques floridos e caçar borboletas. Acreditávamos piamente que a paixão era capaz de transportar os nossos corpos franzinos e as nossas almas espevitadas para muito além do horizonte. O simples ato de observar o ser amado, mesmo que você estivesse escondida atrás de uma árvore a milhares de quilômetros de distância, era como respirar o mais inebriante perfume de sândalo. E um mero olhar do seu principezinho já era suficiente para você se sentir flutuando em um tapete mágico a milhas e milhas de altitude. E, o melhor: sem nunca sentir vertigens ou medo de cair.
Então você virou moça. Neste momento, apenas contemplar o ser amado já não era mais suficiente. Foi quando surgiram, então, as suas primeiras interações, ainda muito desajeitadas e tímidas. O rubor na face era natural. Nenhuma de nós precisava de maquiagem. O que precisávamos, isso sim, era ensaiar palavras na frente do espelho e descobrir em nós mesmas uma coragem assustadoramente poderosa para estabelecer alguma espécie de contato. Como a grande maioria das primeiras paixões, a minha também foi platônica e não correspondida. Agora eu sentia, pela primeira vez, a flecha atravessando o meu coração. Eu nunca havia sentido uma dor assim. Meu grande amigo era meu diário, cuja capa cor-de-rosa era fechada com uma chavezinha dourada. E era para ele que eu dirigia as minhas preces, fazia as minhas promessas e contava os meus progressos na arte da sedução. Meu diário nunca me recriminou. Calado, aceitou tudo aquilo que eu impus a ele com minha letra perfeita e também tudo aquilo que eu impus a mim.
Então virei mulher. Costumo ser muito franca e aberta com relação aos meus sentimentos e à minha intimidade. Sinceramente, não tenho problema algum em falar sobre a minha vida. Mas existe uma única coisa que às vezes ainda me faz corar. Incomoda-me um pouco lembrar de todas as coisas insanas e sem sentido que, ao longo da minha existência, eu fiz em nome do que eu achava que era amor. Fosse amor de verdade, não teria sido assim. Os atos impensados, a fragilidade, o destempero e o desequilíbrio são típicos, na verdade, de um estado de paixão. Se eu tivesse sabido antes, teria feito diferente. Mas eu estava equivocada. Para mim, tudo aquilo era amor. E se até Fernando Pessoa teria dito que "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", quem era eu para discutir?
As paixões não fizeram estragos significativos na minha vida, mas deixaram marcas indeléveis no meu ser. Valeram a pena no momento em que existiram, mas tenho que admitir que o preço pago foi altíssimo em termos de auto-respeito, de auto-controle e de auto-estima. Nos momentos de paixão, sufoquei minha vontade de voar e, voluntariamente, amarrei pesos nos meus pés. Minhas asas se ressentiram e eu não me importei. Em parte, abri mão de mim mesma e corri o risco de que elas se atrofiassem para sempre.
Felizmente, a natureza possui uma inacreditável capacidade auto-curativa e minhas asas se recuperaram e me remeteram àquela época em que eu bebia água nas nascentes e colocava margaridas nos cabelos.  Mas tudo agora era diferente. Com o tempo, veio a consciência de que eram os meus próprios pés que me moviam e que, para voar de verdade, eu teria que exercitar as minhas asas. E comecei a tatear esse terreno, experimentando aqui e acolá as minhas novas descobertas. Demorei muito, mas muito mesmo, para ter a segurança de me elevar um pouco além. Eu sabia que um vento mais forte poderia facilmente me derrubar.
Mas eu não desisti. E, aos poucos, eu fui mudando como um pássaro migratório, que intuitivamente sabe para onde se encaminhar. Em parte, tenho saudade das piruetas, das manobras radicais e até mesmo dos pousos forçados. Mas, em parte, prefiro seguir em velocidade de cruzeiro, observando meu caminho com atenção e sabendo distinguir quem são os predadores e quem são os companheiros.
Ninguém pode dizer que não beberá da água de um determinado rio. Principalmente, se você se vir sozinha em meio a um deserto árido. Sendo assim, hoje eu prefiro abastecer os meus próprios cântaros e minimizar os meus riscos.
Pode parecer covardia. Mas pode ser também que a isso se chame paz. Os voos serenos têm valido muito a pena em minha vida e têm me poupado muita energia. Certa ou errada, com razão ou sem razão, acredito que, desta forma, poderei ir ainda mais longe. E ter muitas outras histórias e finais felizes para contar.

(pássaros migratórios na Alemanha - foto extraída de http://www.nationalgeographic.com/)

sábado, 12 de maio de 2012

NASCIMENTOS E RENASCIMENTOS

No momento do parto nascem dois seres: o bebê e a mãe. E, a partir de então, o choro de um é o choro do outro por toda a eternidade. Antes do nascimento, a mãe tecnicamente não existe. Ela nasce somente quando seu filho chega ao mundo e, por esse motivo, a gestação deve ser considerada uma maravilhosa fase da vida porque permite o nascimento de ao menos duas pessoas. O filho e a mãe, naquele momento, nada sabem sobre os meios de enfrentar o desafio de vivenciarem suas novas experiências.
Por mais vivida que uma mulher possa ser, ela é um recém-nascido quando se trata do instante em que ela ouve os sons do seu filho pela primeira vez. Uma mulher só conhece os sentimentos reais da maternidade quando se torna mãe. É claro que uma mulher que não tem filhos compreende, empiricamente, tais dores e prazeres. Porque cada mulher é, antes de tudo, também uma filha. Mas a essência das razões para cada ato afeto àquela condição é privativa e exclusiva daquela que gerou um filho. 
De uma certa forma, quando nasce a mãe morre algo na mulher. A definição não é precisa, mas o que eu estou tentando dizer é que as alterações das prioridades ocorrem de modo tão profundo que parte da qualidade feminina não pode ser exercida. Enquanto um filho é dependente de sua mãe não existe campo para o exercício integral dos atributos do feminino. Mas as experiências que decorrem da maternidade são tão ricas e inebriantes que a mulher sequer considera que tal modificação, em outro contexto, poderia ser considerada uma perda. Para a mãe, todos os atos em prol de seu filho são ganhos inquestionavelmente significativos. E, assim, a mãe prossegue na saga de criar o seu filho, de amá-lo, honrá-lo e ensinar a ele tudo o que for da esfera de seu conhecimento.
Mas a vida não é um vetor voltado para uma única direção. A mãe também aprende com seu filho e, nesse sentido, dele também é filha. E esta concessão, porque aparentemente surpreendente, aumenta ainda mais o sentimento de admiração que uma mãe pode ter por seu filho. De uma certa maneira, o filho já se fez e, graças ao que ele pôde aprender por si próprio, em tenra idade já é capaz de ensinar.
O tempo passa e o filho cresce e haverá um momento em que ele não mais será dependente de sua mãe. Este momento não é necessariamente definido pela independência econômica ou por conta da superação de conhecimento do filho em relação à sua mãe. Reduzir esta premissa aos pobres parâmetros da capacidade financeira e do aprendizado é menosprezar a complexidade desta relação. Não sei definir o momento em que isso acontece, nem como filha, nem como mãe. Mas é inequívoco que certos distanciamentos, em alguns momentos da vida, produzem profundo impacto, tanto na mãe quanto em seu filho.
De uma certa forma, há um tempo em que o filho passa a fazer as coisas por si mesmo e a presença física da mãe já não é uma necessidade estrutural e orgânica. Não se pode dizer que isso seja bom ou ruim. É apenas a constatação do fluxo natural da vida, que deve ser aceito com a naturalidade de quem compreende as quatro estações do ano. Este ciclo existe e pouco importa que você ame o verão e deteste o inverno. Sua opinião não é relevante para as leis da natureza.
Mas tudo o que muda e morre propicia o renascimento. E este renascimento não significa a morte da mãe. Ao contrário, ele exprime a beleza da transformação da paisagem do tempo. As flores nascem viçosas após o derretimento da neve.
Neste Dia das Mães, eu desejo a todas as mães do mundo e a mim mesma a compreensão das estações da vida. Desejo que cada uma das mães bem conheça estes ciclos de nascimento e de renascimento. Desejo que, em gratidão à dádiva desta qualidade, cada mãe bem exerça o papel de geradora de filho, de mãe e de mulher. Porque dar à luz um filho é dar à luz a sua própria pessoa. E desejo, por fim, que cada mãe tenha em mente que as alternâncias das estações representam, em última instância, o desenho da própria eternidade.

(foto extraída de http://www.picturesofwinter.net/)