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terça-feira, 27 de novembro de 2012

OS NOSSOS PRIMEIROS DESENHOS

Não posso falar por todas as mulheres do mundo. Falo apenas por mim. A cada ano, quando meu aniversário se aproxima, sinto um certo desconforto, interior e exterior. Não. Na realidade, o desconforto exterior é na verdade interior: é uma certa insatisfação com a imagem que você vê no espelho.
Muito anos se passaram desde que você fez o seu primeiro desenho com lápis de cor. E se você se lembrar direitinho, vai ver que aqueles primeiros rabiscos já eram uma espécie de projeto de vida.
Do quanto me recordo, meus primeiros rascunhos em menina eram casinhas com chaminés fumegantes e cerquinhas brancas repletas de flores. Sempre havia também uma lagoa com alguns patinhos amarelos. Vivi neste cenário um bom par de anos, até que a imagem mudou. Um pouco maior, meus desenhos agora eram estradas cujas bordas convergiam no infinito. Nunca tive uma veia artística muito acurada, mas relembrando aquelas imagens, constato que a perspectiva que eu imprimia era bastante realista: as árvores que ficavam à margem da rodovia iam diminuindo de tamanho em direção ao horizonte. Por fim, um pouco mais mocinha, passei a desenhar ilhas com coqueiros, circundadas de um lindo mar ondulado e com a presença soberana de um enorme sol com raios fulgurantes.
Depois que eu cresci, abandonei esta minha arte. Afundei-me nos livros, em atividades esportivas de mil espécies e nas sapatilhas de ballet. Eu já não tinha tempo para me dedicar a aqueles antigos projetos.
Quando finalmente me tornei adulta, percebi que minha vida não se parecia em nada com aquilo que eu havia idealizado. O casamento desfeito me conferiu a certeza definitiva de que eu jamais iria morar naquela casinha cor de rosa de cuja chaminé saía a fumaça de deliciosos bolinhos de chocolate.
Morar em uma ilha deserta no meio do oceano também estava fora de questão. Meu habitat, agora, era uma cidade cinzenta, poluída e cheia de gente. E, quanto à minha estradinha, também nunca foi muito fácil encontrá-la: meu dia-a-dia passou a ser a correria, os compromissos, o trânsito e a falta de tempo.
Pensando em termos pragmáticos, pode-se concluir que eu não era lá muito feliz. Mas, para ser justa comigo mesma, infeliz eu também nunca fui. Apenas me deixei guiar pelo curso da vida e sempre afirmei a mim mesma que minha vida não tinha sido nem melhor e nem pior do quanto imaginado: apenas diferente.
Um dia, porém, tudo mudou. Não foi um estalo,  um milagre ou uma visão. Foi apenas uma mudança. Tudo mudou como tem de mudar quando você está em processo de amadurecimento. Por acaso uma semente se parece com uma fruta madura?
Do nada, veio a percepção. A felicidade não é algo estático, idealizado e imutável. Tal como ocorreu em nossa infância, nossos desenhos também  continuaram se modificando vida afora. Sendo assim, não há razão para frustrar-se com a não realização daqueles primeiros sonhos. Contabilize quantos projetos e planos você pôs em prática desde então.
Na verdade, tal qual aquele barquinho no mar azul, em nossas vidas fizemos inúmeras correções de velas e lemes que, felizmente, nos conduziram até este ponto.
De igual maneira, a perspectiva da estrada também continua existindo. Será que desde aquela época já não pensávamos, inconscientemente, que aquela era a via da nossa  própria existência?
E a casinha, ah, a casinha. É claro que ela existe dentro de nós, pois é lá que guardamos todos os nossos tesouros mais preciosos.
Pode parecer uma bobagem, mas foi uma descoberta e tanto. Porque se os desenhos não eram mais os mesmos, também não eram lá tão diferentes. A matéria-prima pode ter mudado, assim como as cores dos papéis e das canetas. Isto é fato inexorável. 
Mas é também inquestionável que é a mesma mão que ainda segura os pincéis e os lápis de cor. Porque no fundo, embora tenhamos de nos submeter ao implacável passar do tempo, sabemos que somos as donas de  nossos cadernos e de nossas representações. A quem eu, humildemente, poderia chamaria de sonhos.

(Parque Guell, Barcelona - Espanha - foto extraída de Google)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A ONDA E A ALMA

Esta história é verdadeira e aconteceu muitos e muitos anos atrás. Começou num inocente café numa terça-feira qualquer de um longínquo mês de abril. Ainda era cedo, antes das dez horas da manhã, quando minha alma mergulhou no oceano azul do par de olhos mais belos e sinceros que eu conhecera em minha vida. Eu nunca havia sentido tal imensidão. Uma onda me invadiu e me arrebatou. E durante os três anos seguintes eu tive certeza de que aquela onda se chamava amor. 
Não, não é isso que você está pensando. É muito mais. Esse amor era cristalino como a água e profundo como o mar. Era assustador e cálido, forte e suave. Suas ondulações eram capazes de me transportar para lugares nunca antes visitados e de me elevar acima da linha do horizonte.
Na maré cheia, ele era vigoroso, produtivo, potente. Na maré vazante, ele era triste, dilacerante, fugidio.
Mas ele sempre esteve ali, nunca me abandonou. Havia adversidades, dificuldades, impossibilidades. Mas amor assim é leal, persistente, eterno. Não morre jamais.
Neste tipo de amor, o corpo pode ser casto porque é a alma que se desnuda. Ele acontece quando você pode ser você mesma e quando sua mente e seu coração simplesmente sabem e compreendem.
O dono dos olhos azuis costumava dizer que amava a minha forma de ser e de pensar. E é fácil entender o por quê. Nós conversávamos sem falar, nos amávamos sem tocar e sonhávamos sem dormir.
Este amor era uma tela branca à frente de um artista. Ali era possível projetar todos os nossos desejos e planos, dos possíveis aos imaginários. A escolha das tintas, das cores, dos pincéis e das paisagens era somente nossa, o que fez deste amor a obra-prima dos seus criadores.
Este amor era cheio de sons, de risos, de cordas e de gaitas escocesas. Músicas que ecoarão por toda a eternidade. 
É certo que houve desencontros, erros e lágrimas. Como sempre acontece. Mas isso não tem a menor importância, porque o que hoje se recorda são a paixão, as certezas e as emoções incomparáveis.
Dizem que a parte mais erótica das pessoas é a sua alma. Faz sentido. O verdadeiro valor de uma pessoa está na capacidade de ser vivo, inteiro e autêntico. E nada pode ser mais atraente do que isso. Sherazade, de acordo com os manuscritos das Mil e Uma Noites, em um fragmento do século IX, livrou-se da morte e salvou sua alma pela habilidade de contar histórias, noite após noite. Mesmo aprisionada, ela não se entregou ao rei e ele a libertou.
Muitos anos se passaram. Muitas experiências vieram. Mais de uma vez, os oceanos foram cruzados, para o leste e para o oeste, e nunca mais o vi. Mas sei que ele está bem e é isso o que me importa.
As ondas da vida podem, muitas vezes, te carregar de um lado para o outro. Faz parte da nossa existência terrena, essa sim, frágil e fugaz.
Mas o amor, ah, o amor! Essa espécie de amor não morre simplesmente. Pode transformar-se, amadurecer, mudar de rosto, de corpo, de lugar e de condição. Mas a sua essência é perene como é a alma humana. E é profunda e misteriosa como é o oceano. 
Felizes aqueles que, ao menos uma vez em suas vidas, possam se deixar levar pelas correntes e pelos ventos, apenas fechando os seus olhos e entregando-se. É possível que, ao menos por uma fração de segundo, você possa se sentir flutuando e tocando a face da eternidade.

(Waves in Pacifica, California, USA - fonte: wikipedia)